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Vítima de crime: Entenda o trauma e saiba como ajudar

Ser vítima de um crime enquadra-se no grupo de situações traumáticas que podem ter consequências na saúde mental. No Dia Europeu da Vítima de Crime, conheça os sinais a que deve estar atento e perceba como ajudar.

22 Fev 2024 - 09:57

Vítima de crime: Entenda o trauma e saiba como ajudar

Ser vítima de um crime enquadra-se no grupo de situações traumáticas que podem ter consequências na saúde mental. No Dia Europeu da Vítima de Crime, conheça os sinais a que deve estar atento e perceba como ajudar.

Os assaltos, a violência doméstica, a violência sexual, as tentativas de homicídio e as novas tipologias de crime com o recurso à Internet – nomeadamente a exposição de fotografias íntimas sem consentimento – são acontecimentos disruptivos que deixam marcas físicas e psicológicas.

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Foi para acorrer às necessidades de quem é vítima de crime que o fórum europeu Victim Support Europe, agregador dos serviços de apoio às vítimas de mais de duas dezenas de países da Europa, consagrou o dia 22 de fevereiro para assinalar o Dia Europeu da Vítima de Crime, cujas iniciativas em Portugal estão a cargo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).

As vítimas de crimes, independentemente da natureza e grau violência do evento, podem desenvolver quadros de trauma psicológico que carecem de acompanhamento especializado. Duas psicólogas explicam ao Viral os sinais e sintomas a que tanto a vítima quanto a rede de apoio devem ter atenção.

O que é o trauma psicológico?

A Associação Americana de Psicologia define o trauma como “uma resposta emocional a um acontecimento terrível”, após o qual é natural a pessoa lidar com sentimentos de choque, incredulidade e negação.

E, de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª Edição (DSM-5, pág. 271) da Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla anglo-saxónica), o trauma é definido como a exposição de uma pessoa a eventos considerados extremos, como “morte real [de outrem] ou ameaça de morte, ferimentos graves ou violência sexual”.

Renata Benavente, psicóloga, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) e perita na Delegação Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, explica que “as situações de trauma correspondem a experiências de vida que são stressantes, embora tenha algum grau de subjetividade”, pois “aquilo que pode ser vivido como sendo algo stressante e perturbador por uma pessoa pode não ter o mesmo impacto do ponto de vista emocional para outra pessoa”.

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Nesse ponto da subjetividade, a psicóloga Raquel Ribeiro, da APAV, esclarece que “todas as pessoas que vivenciam um crime vão experienciá-lo de uma forma única e singular, e nem todos vão sentir as mesmas reações físicas e psicológicas após viverem uma situação traumática ou impactante”.

Para a psicóloga da APAV, é fundamental salientar que “vivenciar um crime é um acontecimento negativo na vida que pode acontecer a qualquer pessoa”. Por isso, a especialista considera imperativo “desconstruir a ideia de que o crime só aconteceu à pessoa por alguma razão específica, o que a fará desenvolver sentimentos de culpa”.

Somos todos suscetíveis a desenvolver um trauma psicológico?

Quer tenha sido vítima direta do crime, quer tenha assistido à prática de um crime violento, qualquer pessoa pode estar sujeita “ao desenvolvimento desses quadros traumáticos”, reforça a vice-presidente da OPP.

Contudo, existem “momentos no nosso ciclo de vida que podem ser potenciais fatores de risco”, acrescenta Raquel Ribeiro.

A título de exemplo, a psicóloga da APAV enumera os períodos de doença em que a pessoa já está mais fragilizada ou o momento de um divórcio como exemplos de situações que, “ao longo do nosso ciclo vital da vida, podem ter influência e deixar-nos mais vulneráveis perante um acontecimento traumático”. Aliás, podem eles próprios causar traumas psicológicos.

Quem não tem uma rede de apoio estruturada de família, amigos, colegas de trabalho também pode ficar mais fragilizado e ter mais dificuldade em lidar com os sentimentos envolvidos nos momentos após a vivência do crime. 

Outro ponto considerado pelas duas especialistas como agravante é o facto de o agressor ser uma pessoa das relações da vítima.

Um filho que maltrata o pai ou um amigo que agride sexualmente são exemplos de situações que potenciam a dificuldade em lidar com o evento e, consequentemente, levam mais facilmente ao desenvolvimento de trauma psicológico.  

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O que a pessoa sente após o momento traumático?

Frases como “não estou em mim” ou “não me reconheço” são muitas vezes ditas pelas vítimas no período após o evento disruptivo.

Raquel Ribeiro contextualiza, enfatizando que é natural a pessoa sentir-se “desorganizada, porque sente dificuldade em organizar o acontecimento vivido e até pode ter falhas de memória [do evento]”.

É igualmente comum surgir um “sentimento de desconfiança que se instala nela própria, minando a autoestima, e também uma desconfiança geral, temendo as pessoas do meio que a rodeia”, pois aquilo que viveram escapou ao controlo e não foi possível ser prevenido.

E é também muito comum surgirem sentimentos de culpa por pensarem que podiam, de alguma forma, ter evitado aquela situação. 

O trauma psicológico pode também ser acompanhado de reações físicas “como enjoos, náuseas, transpiração excessiva, tremores”, enumera Renata Benavente, ou “falta de energia generalizada, vómitos, dores de cabeça frequentes e afrontamentos”, acrescenta Raquel Ribeiro.

Da experiência que tem das perícias realizadas em contexto de processos judiciais, a psicóloga da OPP refere ainda ser frequente a vítima referir “dificuldades em dormir” e do ponto de vista emocional.

As vítimas reportam também sentir “o batimento cardíaco acelerado se pensam na situação traumática e a necessidade de evitar locais que associam àquele evento ou contextos que ativam memórias, que até podem ser sensoriais, como odores e sons”.

Sendo este quadro sintomatológico bastante comum, a representante da OPP salienta que, “quando não se intervém atempadamente, o risco potencial de cristalização dos sintomas existe, é grande e pode dificultar o processo de recuperação”.

Nesse sentido, Renata Benavente defende que, logo após o evento, deve ser disponibilizada ajuda psicológica à vítima de forma para esta avaliar se necessita de acompanhamento. 

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Quando se fala de perturbação de stress pós-traumático?

Pode dizer-se que o trauma psicológico tem graus de gravidade. Uma parte das pessoas desenvolve sintomas físicos, psicológicos e emocionais nos dias seguintes ao crime, mas com gestão individual e/ou com acompanhamento profissional imediato consegue ultrapassar esse transtorno de stress agudo no espaço de cerca de um mês.

Contudo, se a sintomatologia se estende para lá desse período, ou regista algum agravamento, aumenta o risco de desenvolver perturbação de stress pós-traumático (PSPT), um transtorno psiquiátrico.

Nestes casos, explica a APA na página oficial, a pessoa pode experienciar:

  • Pensamentos intrusivos: Como memórias repetidas e involuntárias, sonhos ou flashbacks do evento traumático que as faz pensar que estão a reviver a experiência traumática; 
  • Evitação: Evitar lembranças do evento traumático – seja lugares, pessoas ou objetos – ou resistir a falar sobre o que aconteceu e de como se sentem a respeito disso; 
  • Alterações na cognição e no humor: Incapacidade de lembrar aspetos importantes do evento traumático, pensamentos e sentimentos negativos ou distorcidos que levam a crenças contínuas e distorcidas sobre si mesmo ou sobre os outros. Pode sentir-se incapaz de experimentar emoções positivas (vazio de felicidade ou satisfação); 
  • Alterações na excitação e reatividade: Podem incluir irritabilidade e explosões de raiva, comportar-se de forma imprudente ou autodestrutiva, assustar-se facilmente, ter problemas de concentração ou de sono.

Como é feito o acompanhamento da vítima de crime?

Ambas as psicólogas reforçam a importância da procura de ajuda especializada o mais cedo possível, de forma a não deixar os sintomas prolongarem-se no tempo e dificultarem a recuperação da vítima de crime.

No campo terapêutico, as terapias cognitivo-comportamentais têm-se revelado muito eficazes, enfatizam Renata Benavente e Raquel Ribeiro. 

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“É uma forma de obter resultados num curto espaço de tempo, ajustando o universo [de intervenções] às necessidades de cada pessoa”, explica a psicóloga da APAV.

Entre estas, refere a APA, existem as terapias centradas no trauma: 

  • Terapia de Exposição Prolongada: Utiliza a imaginação repetida e detalhada do trauma ou exposições progressivas a “gatilhos” de sintomas de uma forma segura e controlada para ajudar a pessoa a enfrentar e a controlar o medo e a angústia; 
  • Terapia de Processamento Cognitivo: Ajuda a desafiar e a modificar crenças desajustadas que estão associadas ao trauma; 
  • Dessensibilização e Reprocessamento por Movimentos Oculares (EMDR – Eye Movement Desensitization and Reprocessing): Reprocessa a memória traumática, pedindo ao doente para se concentrar nessa mesma memória enquanto realiza movimentos oculares semelhantes aos do sono REM.

Quando se está perante um caso de PSPT pode ser necessário recorrer a um psiquiatra para a prescrição de fármacos – como antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos – que vão interferir nos mecanismos cerebrais responsáveis pela doença e vão ajudar a controlar os sintomas.

E como pode a rede de apoio ajudar?

Familiares e amigos desempenham um papel fundamental em todo o processo de recuperação da vítima. Renata Benavente lembra que a OPP disponibiliza gratuitamente um manual digital com conselhos para a rede de apoio e para a própria vítima.

A psicóloga sublinha que, num acontecimento índole criminal, “é natural que o foco imediato seja o apoio à vítima, mas este tipo de fenómenos afeta toda a família e toda a rede de apoio daquela pessoa, que também ficam fragilizados”.

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Renata Benavente dá o exemplo dos pais de uma criança ou jovem vítima de abuso sexual. 

“Sentem uma grande culpa porque consideram que não agiram para defender o filho ou filha”, conta, defendendo que nos casos de crime “é também fundamental apoiar a rede da vítima, uma vez que todos vão ser muito importantes na recuperação de quem sofreu diretamente o crime”. 

Raquel Ribeiro também frisa a importância de “não estigmatizar a vítima ou colocar-lhe rótulos na expectativa das reações que outros acham que ela devia ter”.

Evitar frases como “isso já passou” ou “não penses mais nisso” são totalmente de evitar. “Deve haver um acolhimento das emoções da vítima e devemos acompanhar a pessoa ao seu ritmo emocional para que ela sinta, efetivamente, que tem uma rede de apoio”, conclui.

Linhas de apoio

  • SNS – Linha de Apoio Psicológico 

808 24 24 24 

  • APAV

Linha de Apoio à Vítima 

Dias úteis – das 8h às 23h

116 006 – Chamada gratuita

  • SOS Voz Amiga

Diariamente das 15h30 às 00h30

213 544 545 – Chamada para rede fixa nacional

912 802 669 – 963 524 660 – Chamada para rede móvel nacional

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Saúde mental

22 Fev 2024 - 09:57

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